INTRODUÇÃO
É fato fora de controvérsia que a declaração mais citada de Agostinho é a que se encontra nas primeiras linhas da sua mais famosa obra, Confissões: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”. Esta frase se constitui na porta de entrada para toda a antropologia do grande bispo de Hipona.
Fica claro que suas Confissões vem a ser o desdobramento desta declaração vital. Em diversas passagens Agostinho desenvolve as três idéias básicas que subjazem a este conceito sobre o ser humano. Que idéias são estas? A primeira é que o homem foi feito para o seu Criador. Este é o grande propósito para o qual o homem foi criado. Para Agostinho a essência precede a existência. Pensando de um modo bastante diverso da antropologia existencialista Agostinho cria que o homem nasce definido. O pensamento existencialista afirma que o homem nasce primeiro e depois sai em busca da sua definição. E neste sentido é livre para definir-se a si mesmo. Como diz Sartre: “Antes de tudo, o homem existe, chega, aparece na cena, e, apenas depois, define-se a si mesmo”.[1] Ele pode definir-se, por exemplo, como um ser que nasceu em um mundo sem propósito, não havendo base tanto para a construção de um senso de dignidade humana como para a ética. Para Agostinho o homem pode até ser livre para tentar viver de um modo contrário à sua vocação básica, mas o que ele não pode é deixar de ser o que é: um ser chamado para olhar para o alto. Criado com uma profunda necessidade de amar e se sentir amado por aquele que o criou.
A segunda idéia básica que encontramos na conhecida afirmação introdutória que trata do relato de sua conversão é a de que o homem sem Deus é um ser em estado de perpétuo desassossego. Longe do seu criador, recusando-se a cumprir o alvo da sua existência o ser humano torna-se fadado a viver num universo que por si só não o satisfaz. A alma torna-se insaciável. Isto, para o conhecido pai da igreja resulta numa série de desdobramentos psicológicos, morais e espirituais bastante trágicos para a alma humana.
Em terceiro lugar, encontramos uma nota de esperança. O coração do homem pode repousar em Deus. Notamos em Agostinho uma alma atormentada que aprendeu a se aquietar em Deus. Ciente das demandas mais profundas do coração e da beleza indescritível de Deus o homem é um ser que pode aprender a fixar seus afetos naquele que se constitui no propósito da sua criação.
O que gostaria nesta obra é de apresentar estas três idéias básicas sobre a alma humana no pensamento de Agostinho à luz das suas Confissões e dos desdobramentos das mesmas na história da espiritualidade cristã. É fato que esta obra tem exercido grande influência na vida de milhares de cristãos ao longo dos séculos. Com razão afirma Herbert Jacobsen: “Embora escrito a aproximadamente 1600 atrás (Confissões), ainda permanece como uma das mais amplamente lidas obras religiosas no mundo ocidental...A cultura e teologia ocidental devem muito a esta biografia singular”.[2] O reconhecimento entre cristãos de todos os matizes espirituais de que estamos diante de uma obra de fato singular é bastante amplo: “A obra, em seu conjunto, é uma das maiores obras-primas da literatura universal; revela a preeminente mestria de Agostinho ao descrever movimentos e estados da alma”.[3]
A razão de ser deste tema central na presente obra reside no fato de que o mundo ocidental caminha para uma dura experiência. Nunca houve sociedade mais opulenta do que a nossa. Os avanços tecnológicos e científicos dos últimos anos têm remetido seus cidadãos para uma espécie de vida nunca antes experimentada e até mesmo sonhada. Contudo, precisamos de responder à uma pergunta: quem é mais infeliz, aquele que passou a vida inteira a desejar coisas que nunca pôde obter, ou aquele que embora tenha podido colocar as mãos no que sempre sonhou provou ao mesmo tempo de um grande vazio no coração? Para Agostinho, esta experiência de provar fel nos prazeres da vida é uma grande expressão da bondade divina. É bom para o homem perceber de uma forma ou de outra que este mundo por si só não o satisfaz. Fazer o correto diagnóstico, porém, sem mostrar onde encontrar a solução do problema é trágico. Atestar a infinita sede da alma sem apontar para a fonte inesgotável onde esta mesma sede pode ser saciada conduz ao desespero.
Proponho-me, sendo assim, a apresentar um breve relato biográfico de Agostinho, uma análise nas Confissões da sua declaração central, o impacto do contéudo desta na história da espiritualidade cristã subsequente e por fim uma aplicação para a vida do homem moderno.
VIDA E OBRA DE AGOSTINHO DE HIPONA
Agostinho nasceu na África do Norte na cidade de Tagaste (atual Argélia) no ano de 354. Sua mãe Mônica era uma cristã fervorosa enquanto seu pai de nome Patrício era um pagão que veio a se converter ao cristianismo apenas no final da vida.
Agostinho começou seus estudos na cidade onde nasceu indo mais tarde para a cidade vizinha de Madaura, e com a idade de dezessete anos dirigiu-se para Cartago onde se dedicou ao estudo da retórica. Foi nesta cidade que Agostinho leu Hortencio de Cícero, obra que o fez distanciar-se da retórica pura e superficial e dedicar-se à busca da verdade. Nesta busca Agostinho veio a envolver-se com o Maniqueísmo, que tratava-se de uma doutrina que seguia o antigo caminho gnóstico de procurar oferecer resposta a trágica condição humana mediante uma revelação que o faz conhecer sua origem divina e o livra das amarras da matéria. O maniqueísmo era profundamente dualista. Luz e trevas eram vistas como princípios eternos e antagônicos. Agostinho permaneceu durante nove anos no maniqueísmo. Até que após ir em busca de respostas racionais que ainda o atormentavam num encontro com o famoso líder maniqueu, Fausto de Mileva, Agostinho decepcionado com as soluções apresentadas para seus impasses intelectuais abandona o maniqueísmo. Isto o leva para o ceticismo da Academia.
Em Milão, na sua sede da verdade, Agostinho tem contato com o neoplatonismo. Diz Justo Gonzales:
As obras dos que ele chama platônicos, provavelmente Plotino, Porfírio e outros neoplatônicos, não apenas tiraram Agostinho do ceticismo em que havia caído, senão que o ajudaram a resolver duas das grandes dificuldades que o impediam de aceitar a fé cristã: o caráter incorpóreo de Deus e a existência do mal.[4]
Desde a sua infância Agostinho recebeu instrução cristã através da sua mãe. Nas suas Confissões Agostinho revela a grande influência espiritual que recebeu dela e do quanto ela ansiou pela sua conversão. Angustiada com a demora de seu amado filho converter-se a fé cristã, Mônica é consolada por um bispo que lhe diz a seguinte coisa, tomada pela mesma como revelação divina: “Vá e viva em paz, pois é impossível que possa perecer um filho de tantas lágrimas”, e Agostinho prossegue dizendo: “Muitas vezes ela recordava, mais tarde, em suas conversas comigo, que recebera essas palavras como vindas do céu”.[5] Antes dos seus dezoito anos tomou uma concunbina com quem teve um filho de nome Adeodato que significa “dado por Deus”.
Apesar do parcial exame da fé cristã feito desde a sua juventude, Agostinho sentiu-se por ela repelido. Três foram os motivos que o impediram de abraçar a fé cristã mais cedo. Os problemas intectuais para os quais não encontrava resposta no cristianismo, o conteúdo do Antigo testamento e o estilo de vida hedonista que procurava viver, em especial no que relacionava-se ao seu amor pelas mulheres. Kenneth Scott Latourette menciona o fato de que o estilo literário da tradução latina das Escrituras Sagradas com toda sua crueza foi um obstáculo para a conversão de Agostinho, já que este era o único meio de que dispunha para conhecer as Escrituras.[6]
Em busca de trabalho foi para a cidade de Milão onde havia uma vaga para trabalhar como mestre de retórica. Sua ida para esta cidade foi decisiva. Em Milão Agostinho conheceu o neoplatonismo e o grande bispo da cidade, Ambrósio, que juntamente com seu companheiro Simpliciano foram fundamentais para a conversão de Agostinho. Realmente ele foi muito influenciado pelo Bispo Ambrósio. A princípio Agostinho se aproximou do bispo de Milão pelo interesse pela retórica. Ambrósio era um grande pregador. Mais tarde, porém, começou a prestar atenção não para a forma como Ambrósio falava, mas para o que ele falava. Suas dúvidas começaram a ser disspadas e uma forte convicção de pecado se apoderou do seu coração. Sua oração era: “Dá-me a castidade e a continência, mas que não seja para já”.[7] Sua alma estava em guerra.
Chegou o dia, porém, em que finalmente sua busca pela verdade resultou num encontro com a mesma. E nada melhor do que deixarmos Agostinho falar sobre como a luz divina finalmente raiou em seu coração:
Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava desesperadamente: ‘por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? por que não por fim agora à minha indignidade?’ Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor de coração. Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindo continuamente uma canção: ‘Toma e lê, toma e lê’. Mudei de semblante e comecei com a máxima atenção a observar que se tratava de alguma cantilena que as crianças gostam de repetir em seus jogos. Não me lembrava, porém, de tê-la ouvido antes. Reprimi o pranto e levantei-me. A única interpretação possível para mim, era a de uma ordem divina para abrir o livro e ler as primeiras palavras que encontra-se. Tinha ouvido que Antão, assistindo por acaso a uma leitura evangélica, sentiu um chamado, como se a passagem fosse lida especialmente para ele: Vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me. E logo, através dessa mensagem, converteu-se a ti. Apressado, voltei ao lugar onde Alípio ficara assentado, pois, ao levantar-me, havia deixado aí o livro do apóstolo. Peguei-o, abri e li em silêncio o primeiro capútulo sobre o qual caiu o meu olhar: ‘Não em orgias e bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne’. Não quis ler mais, nem era necessário. Mal terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da dúvida, como se penetra-se em meu coração uma luz de certeza”[8]
Era o ano de 386 e a vinte e cinco de Abril de 387 Agostinho juntamente com seu filho Adeodato veio a ser batizado pelo bispo Ambrósio.
Falando resumidamente, tendo regressado para a Africa onde veio a se tornar bispo da cidade de Hipona, Agostinho tornou-se um escritor que veio a exercer influência pouco igualada na história do pensamento cristão subsequente. Para Latourette:
Nenhum cristão depois de Paulo haveria de exercer uma influência tào ampla, tao profunda e tão prolongada, sobre o cristianismo da Europa Ocidental, assim como aquelas formas de fé que nasceram dele, como a que teve Agostinho.[9]
Opinião não menos exaltada nos é apresentada pelo famoso historiador Justo Gonzales:
Agostinho é tanto o fim de uma era como o começo de outra. É o último dos pais da antiguidade e o fundamento de toda a teologia latina da Idade Média. Nele convergem as principais correntes do pensamento antigo e dele fluem, não só a escolástica medieval, como também boa parte da teologia protestante do século XVI.[10]
Após sua conversão a vida de Agostinho pode ser didivida em três fases: o trabalho de refutar o maniqueísmo, seus ataques aos donatistas e por fim a defesa da livre graça de Deus em resposta aos pelagianos. Seu labor literário foi permeado de controvérsias num esforço de preservar a fé cristã dos erros doutrinários do seu tempo.
Suas mais conhecidas obras são suas Confissões, que “veio a ser uma das autobiografias mais lidas e que mantém lugar entre os mais comoventes e profundos registros da alma humana e de suas lutas”,[11] e Cidade de Deus, escrita como uma interpretação da história, sendo um dos seus principais objetivos defender o cristianismo da acusação de que este foi o responsável pela derrocada do Império Romano ao afastar os cidadãos do império do culto prestados aos ídolos. Agostinho morreu aos setentas e seis anos de idade, na cidade de Hipona. Seu legado extraordinário deve-se a grande fidelidade às Escrituras sagradas revelada na maior parte de sua obra, sua capacidade de responder às questões do seu tempo, a amplitude do corpo doutrinário de seus escritos; e, por fim, sua teologia forjada em meio a muita oração, busca de respostas e anseio por contemplar a beleza da verdade. E é sobre sua jornada espiritual e tudo o que ela representou para a história da espiritualidade cristã que passamos a ver agora.
UMA ANÁLISE DA DECLARAÇÃO CENTRAL DE AGOSTINHO NO SEU LIVRO CONFISSÕES
FIZESTE-NOS PARA TI: O PROPÓSITO DA VIDA HUMANA.
A certeza de que o homem foi criado para o seu criador foi algo determinante na vida de Agostinho mesmo antes de sua conversão. O que lhe faltava era afeto por Deus e poder para vencer os apelos da carne, em especial a sensualidade. Mas, a convicção de que este era o lugar para onde sua busca deveria convergir foi algo que se apoderou do seu espírito mesmo antes da sua adesão ao cristianismo. E tal pensamento exerceu tanta influência sobre sua vida cristã que podemos dizer que parte do conteúdo das suas Confissões visa defender a razão de ser desta verdade.
Para Agostinho Deus criou o homem para amar o seu criador e por isto este ordena que o homem o ame. A maior de todas as tragédias é o ser humano não atingir este alvo: “Que sou eu aos teus olhos, para que me ordenes amar-te e, se eu não o fizer, te indignares e me ameaçares com imensas desventuras? Como se o não te amar fosse desgraça pequena!”[12] À luz de tudo aquilo que a Bíblia fala não poderia ser diferente. Amar a Deus é o principal mandamento porque além de ter criado tudo para si não há nada na vida que seja mais excelente, amável e digno do nosso amor do que Deus.
O homem deve amar a Deus por ser esta a vontade dele revelada na Escrituras, mas também porque fora dele a alma não encontra nada que possa de tal modo satisfazê-la como Deus: “Na verdade, esses bens inferiores também satisfazem, mas não como satisfaz o meu Deus, que tudo criou, pois nele o justo encontra alegria, e ele é a alegria dos homens de coração reto”.[13] Este é um dos pontos centrais da análise que Agostinho faz da condição da alma humana. O homem vive num universo que por si só não o satisfaz. Sendo assim, nenhuma ciência que visa entender a alma humana haverá de conduzir o homem a verdadeira felicidade esquecendo-se desta verdade fundamental. Procurar resposta para a inquietude humana em qualquer outro lugar sem partir das relações do homem com seu Deus é administrar os sintomas sem tratar das causas da enfermidade.
Portanto, quando o homem não vive para o amor do seu criador tanto transgride a vontade de Deus quanto faz uma violência contra sua própria alma: “O bem que amais procede dele, mas só é bom e suave quando para ele é dirigido. Torna-se justamente amargo, porque, se abandonamos a Deus, torna-se injusto amar aquilo que dele deriva”.[14] Deste modo é pecado amar qualquer coisa cujo vínculo não seja Deus.
O grande problema da alma humana é a criação de estratégias que visem levar o homem a procurar substitutos nos pecado para o vazio proveniente da ausência de Deus. O pecado passa a ser visto não apenas como um mal moral, mas como uma loucura na medida em que o mesmo não pode realizar o que promete:
A soberba quer imitar a grandeza, enquanto somente tu és o Deus altíssimo que estás sobre todas as coisas. E a ambição, o que procura senão honras e glórias, enquanto somente tu és digno de ser honrado e glorificado eternamente? A crueldade dos poderosos deseja ser temida; mas, quem deve ser temido, senão tu, meu Deus? Ao teu domínio nada pode fugir: quem o poderia fazer, e como, e quando? Os carinhos dos voluptuosos buscam a reciprocidade do amor, mas nada é mais acariciante do que a tua caridade, e nada mais salutar para ser amado, que a tua verdade, a mais bela e replandecente de todas as coisas.[15]
Deste modo, descobrimos que não se combate o pecado apenas revelando-o como um mal moral, mas como loucura. Um péssimo substitutivo para aquilo de que de fato o coração humano carece. “É assim que o homem peca, quando se afasta de ti e busca fora de ti a pureza e a limpidez, que ele não pode encontrar senão voltando para ti”.[16]
Agostinho vê o homem como um ser constitucionalmente atraído pela beleza. E não há beleza maior do que a de Deus: “Todas as obras saídas de tuas mãos são belas, e tu, que as criaste, és indizivelmente mais belo”.[17] O belo ocupa lugar central na sua vida espiritual: “Eu quero a ti, ó justiça, ó inocência, ó beleza que atrai o olhar dos virtuosos, que em ti se satisfazem sem jamais se saciar”.[18] Ele se dirigia a Deus chamando-o de “beleza das belezas”.[19] Embora admita que houve um tempo em sua vida que julgava que a garantia de um prazer corporal perpétuo poderia satisfazer-lhe a alma, foi levado ao entendimento que a beleza de Deus proporciona prazer insuperável ao coração humano sendo esta beleza desejável por si mesma:
E me indagava: se fôssemos imortais e vivêssemos num perpétuo prazer do corpo, sem temor de perdê-lo, por que não seríamos felizes? Que coisa seria preciso procurar? Eu não estava percebendo que nisso consistia a minha miséria. Imerso no vício e cego como estava, não conseguia pensar no esplendor da luz e da beleza, desejáveis por si mesmas, invisíveis aos olhos do corpo e só percebidas no íntimo da alma.[20]
Seguindo uma linha de pensamento muito parecida com a de Anselmo no seu clássico argumento ontológico[21], Agostinho diz:
De fato, nenhum espírito pôde ou poderá jamais imaginar algo melhor que tu, supremo e perfeito bem. Sendo absolutamente certo e verdadeiro que o incorruptível é preferível ao corruptível (como eu já admitia), eu poderia, caso não fosses incorruptível, atingir com o pensamento algo mais perfeito do que o meu Deus.[22]
Para Anselmo é impossível que Deus não exista e para Agostinho é impossível que Deus seja corruptível, pois para ambos caso assim fosse possível com o pensamento atingiríamos algo mais perfeito do que Deus, o que é absurdo.
A incalculável alegria que experimenta aquele que encontra a Deus é a outra razão apresentada por Agostinho pela qual o homem foi criado para Deus:
Em nehuma dessas realidades que percorro, e sobre as quais te consulto, encontro lugar seguro para a minha alma, senão em ti. Somente em ti posso reunir todos os pensamentos dispersos, e nada de mim se afasta de ti. E tu às vezes me introduzes num sentimento interior totalmente desconhecido, inexplicavelmente doce; tal sentimento, se atingisse dentro de mim a plenitude, tornar-se-ia algo certamente não pertencente a esta vida.[23]
Provar desta alegria em Deus era a força motriz do viver de Agostinho: “É esta a minha esperança, pela qual vivo: que eu contemple as delícias de Deus”.[24] Deus é o grande prazer do homem santo: “De fato, tu és as delícias vitais de um coração puro”.[25]
O conhecimento de Deus para Agostinho, portanto, se constituía na forma mais gloriosa e compensadora de conhecimento:
Senhor, Deus da verdade, será suficiente conhecer estas coisas para te agradar? Infeliz o homem que conhece tudo isso e não te conhece. Feliz aquele que te conhece, ainda que ignore o resto. Aquele que te conhece a ti e também as outras coisas, não é mais feliz por este conhecimento, mas somente por conhecer a ti, e conhecendo-te, te glorifica pelo que és, e te rende graças, e não se perde em vãs relfexões...a pessoa de fé possui todas as riquezas do mundo e, mesmo que nada tenha, é como quem tudo possui, pois está unida a ti, Senhor de todas as coisas, pouco importando se nada sabe sobre o percurso da Ursa Maior![26]
Uma fato que merece destaque na teologia de Agostinho é a doutrina da felicidade de Deus: “...somente tu, o único ser simples, aquele que não possui outra vida, senão a vida feliz, porque tu és a tua própria felicidade”.[27] Vemos ecos desta doutrina em Jonathan Edwards: “Deus é um ser perfeitamente feliz, no mais absoluto e mais alto senso possível”. Como ressalta o teólogo americano John Gerstner:
Edwards argumenta que se Deus se deleita em contemplar a beleza, Ele deve ser infinitamente feliz porque Ele contempla a si mesmo. Ele é de fato a fonte de toda a felicidade. Embora a maneira da felicidade de Deus seja essencialmente incompreensivel, a Bïblia indica que ela consiste em amor. A Trindade tem um eterno prazer em cada outro. Se Deus fosse infinito sem ser bom, talves Ele pudesse não ser feliz. Se Ele fosse bom sem ser infinito, quase certamente Ele não poderia ser feliz. Mas a bem-aventurança de Deus é que Ele é o que que quer ser. Ele é infinitamente santo e santamente infinito.[28]
O Deus de Agostinho é feliz e da sua plenitude de felicidade fluem sua criação e todas as bênçãos que derrama sobre ela, em especial o homem. O amor deste Deus feliz pelo homem o deixava estupefato: “Eis que agora existo, graças à tua bondade, que precedeu tudo aquilo que sou e de onde fui criado. Não tinhas necessidade de mim, e eu não sou um bem de quem possas receber auxílio, meu Senhor e meu Deus”.[29]
INQUIETO ESTÁ O NOSSO CORAÇÃO: O DESASSOGO DA ALMA HUMANA.
Poucos autores foram tão capazes de apresentar a miséria da vida humana longe da comunhão com Deus como Agostinho. Nele vemos uma cristão falando como um existencialista atormentado. Ele não deixa escolha. Ou o homem se rende ao seu criador realcionando-se com ele em amor ou viverá em estado de ininterrupta inquietação que haverá de jogar fel até nos seus maiores prazeres. Em que consiste o desespero humano para Agostinho?
Agostinho pensava na vida de pecado como algo profundamente desgastante. Esta é uma das tragédias de uma vida gasta longe de Deus. Os dons de Deus se corrompem no homem. O que tem lhe é tirado: “Desde a adolescência, ardi em desejos de me satisfazer em coisas baixas, ousando entregar-me como animal a vários e teneborsos amores! Desgastou-se a beleza da minha alma e apodreci aos teus olhos”.[30] Esta vida caracterizada pela satisfação dos desejos pecaminosos, portanto, era vista por Agostinho como mais digna de misericórdia do que a vida de alguém privado de algum prazer pecaminoso. Ele diria que o mais infeliz é aquele que não percebe sua infelicidade: “Mas, atualmente tenho mais compaixão do homem que se alegra no vício, do que pena de quem sofre a privação de um prazer funesto e a perda de uma felicidade ilusória”.[31]
A desgraça de uma vida em pecado para Agostinho consistia no fato de que o pecador age contra sua natureza conforme criada à imagem e semelhança de Deus, e como se não bastasse isso torna-se passível do justo juízo de Deus:
Mas que ações pecaminosas podem atingir-te, ó Deus, se és incorruptível? Que delitos te ofendem se é impossível fazer-te mal? Castigas as culpas que os homens cometem contra si mesmos, porque, mesmo quando pecam contra ti, fazem mal à sua própria alma, e a sua iniquidade se engana a si mesma, destruindo e pervertendo a própria natureza que criaste e ordenaste, quer servindo-se imoderadamente das coisas lícitas, quer desejando ardentemente as ilícitas, mediante uso contrário à natureza.[32]
O amor a Deus é substituído na vida do homem que não o ama pelo amor ao que é mortal levando esta fixação enganosa dos afetos à uma insatisfação e ansiedade sem fim: “Eu era infeliz, como infeliz é todo espírito subjugado pelo amor às coisas mortais, cuja perda o dilacera, e então deixa perceber a extensão da infelicidade que já o oprimia antes de perdê-las”.[33] Quando a alma decide fixar-se a qualquer coisa que não seja o Deus imutável terá forçosamente de procurar descanso naquilo que se corrompe e tende para o não ser:
Para qualquer parte que se volte a alma humana, se não se fixa em ti, se agarra à dor, ainda que se detenha nas belezas que estão fora de ti e fora de si mesma. Estas nada teriam de belo, se não proviessem de ti. Nascem e morrem: nascendo, começam a existir e a crescer para chegar à maturidade; porém, uma vez maduras, decaem e morrem. Nem tudo envelhece, mas tudo morre. Portanto, no exato momento em que nascem e começam a existir, quanto mais rapidamente crescem para o ser, tanto mais correm para o não ser.[34]
Em que consiste a tragédia de se viver assim? Consiste no fato de que a alma deseja repousar no objeto que ama. Mas, fora Deus tudo é instável: “...o desejo da alma é existir e repousar no objeto que ama. Mas ela não encontra lugar de repouso nas coisas, porque não são estáveis: fogem”.[35]
Agostinho sabia por experiência própria que a felicidade sem Deus é fugidia: “Se me sorria um momento de felicidade, hesitava em segurá-lo, pois estava conscio de que voaria antes mesmo que eu o alcancásse”.[36] O sentimento na opinião de Agostinho que caracteriza a vida longe de Deus é a ansiedade:
Na adversidade desejo a prosperidade, e na prosperidade temo a adversidade. Haverá entre esses dois extremos um estado intermediário, onde a vida humana não seja uma tentação? Execráveis as prosperidades do mundo, duas vezes execráveis, seja pelo temor da adversidade, seja pela corrupção da alegria![37]
A dura realidade da morte também fazia parte da lista de coisas que tornam a vida do homem um verdadeiro inferno: “A vida é infelicidade, a hora da morte é incerta. Esta surge de repente: e eu, em que condições deixarei este mundo? Onde poderei aprender o que nesta vida negligenciei saber? Não terei antes que pagar com duras penas essa negligência?”[38] Foi Pascal que tempos depois descreveu a condição humana em termos bastante parecidos:
Imagine-se uma porção de homens na cadeia todos condenados à morte: uns são diariamente degolados à vista dos outros, enquanto os que ficam vêem a sua própria condição na dos seus semelhantes e, entreolhando-se com dor e sem esperança, esperam a sua vez. É a imagem da condição dos homens.[39]
ENQUANTO NÃO DESCANSA EM TI: O ÚNICO LUGAR DE REPOUSO DA ALMA.
Em Agostinho o homem emerge do desespero mais profundo a fim de provar de uma alegria inimaginável para aqueles que não conhecem o Deus cristão. A alma pode repousar no Deus que põe fel nos nossos prazeres a fim de nos trazer de volta para si. O que há de especial nas suas Confissões é que a partir da sua jornada espiritual e Escrituras Sagradas Agostinho mostra o caminho do repouso em Deus. O que é necessário para que a alma prove deste repouso?
No espírito do Novo Testamento Agostinho afirma que quem procura Deus o encontra: “Quem o procura encontra, e, tendo-o encontrado, o louvará. Que eu te busque, Senhor, invocando-te; e que eu te invoque, crendo em ti: tu nos foste anunciado”.[40]
Agostinho destaca a graça soberana de Deus em atrair de modo irresitível para si aqueles que dentre a raça humana caída foram separados para a eterna redenção. É Deus que quebra o poder do mal no coração do homem, dá vida à alma e cria uma nova sensibilidade para os prazeres divinais: “Os ouvidos do meu coração estão diante de ti, Senhor; abre-os e dize à minha alma: eu sou a tua salvação. Correrei atrás destas palavras e te segurarei. Não escondas de mim a tua face: que eu morra para contemplá-la e para não morrer”.[41] Em suma, para Agostinho sem a graça preveniente de Deus não há salvação:
Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz.[42]
O texto clássico nas Confissões sobre a soberania de Deus na obra de mudança das disposições da alma humana revela o quanto para Agostinho a graça antecede a conversão: “Ó amor, que sempre ardes e não te extingues jamais! Ó caridade, meu Deus, inflama-me! Tu me ordenas a continência: concede-me o que me ordenas, e ordena o que quiseres”.[43]
Sem um coração humilde não há esperança para o homem. O outro caminho que Agostinho aponta para aqueles que querem conhecer a Deus é o caminho da humildade. Esta humildade precisa ser intelectual: “Que posso fazer, se alguém não compreende? Que exulte, dizendo: que mistério é este? Que exulte e prefira encontrar-te, não te compreendendo, a não te encontrar, compreendendo”.[44] Humildade moral também é necessária: “Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções de minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar, ó meu Deus”.[45] As portas do reino de Deus se abrem de par em par para aqueles que pela graça divina se aproximam do seu criador em arrependimento e fé: “Que há mais próximo de teus ouvidos que um coração arrependido e uma vida de fé?”[46] As Escrituras haverão de ser sempre um enigma para quem é soberbo: “resolvi por isso dedicar-me ao estudo das Escrituras Sagradas, para conhecê-las. E encontrei um livro que não se abre aos soberbos”.[47]
A Bíblia é outro recurso da misericórdia de Deus para a vida de todo aquele que quer aprender a repousar em Deus. Sua própria experiência de conversão prova este fato. Os salmos do Antigo Testamento muito o ajudaram também: “Quantas exclamações me inspiravam a leitura desses salmos, e como eles me inflamavam no teu amor!”[48] Para Agostinho a excelencia da Bíblia é uma das provas da sua inspiração divina:
Não conhecemos outros livros que tão eficazmente destruam a soberba e abatam o inimigo, o defensor que resiste a idéia de reconciliar-se contigo, defendendo os próprios pecados. Não conheço, Senhor, não conheço palavras tão puras, que tanto me induzissem a confessar-te, a tomar sobre minha cabeça o teu jugo, que me convidassem a prestar-te tão desinteressado culto.[49]
Para Agostinho outro motivo de esperança é a proximidade de Deus: “Porque não é caminhando nem atravessando espaços que de ti nos afastamos ou a ti retornamos”.[50] Deus está mais próximo de nós do que aquele que nos é mais íntimo: “...a ti que tiveste compaixão de mim quando eu ainda não te conhecia. Tu estavas mais dentro de mim do que a minha parte mais íntima”.[51]
Deus é visto por Agostinho como aquele que pela sua providência atrai o homem para si. Discernir estes sinais da providência é fundamental:
Sempre estavas presente em tua severa misericórdia, entremeando de amargos desgostos os meus prazeres ilícitos, a fim de que eu aprendesse a procurar alegria sem ofender-te. Se eu tivesse encontrado, só teria encontrado a ti, Senhor, que nos dás a dor como preceito, que feres para curar e nos tiras a vida para não morrermos longe de ti.[52]
Para Agostinho uma grande expressão do amor providencial de Deus é a experiência vivida por muitos de experimentar tristeza no prazer: “Deus meu, misericórdia minha, como foste bom em derramar tanto fel sobre meus prazeres”.[53] Numa outra passagem fala no mesmo tom: “Eu aspirava às honras, à riqueza, ao matrimônio, e tu rias de mim. Nesses desejos amargos eu sofria dissabores, e tu me querias tanto mais bem quanto menos consentias que eu experimentasse consolação naquilo que não eras tu”.[54]
Um profundo senso de completa dependência de Deus é fundamental também:
Ai do homem temerário que, afastando-se de ti, pensa encontrar algo bem melhor! Quer se volte ou revire para trás, para os lados ou para frente, todas as posições lhe são incômodas, pois só em ti acha tranquildade.[55]
Esta dependência de Deus deve ser vista de igual modo do ponto de vista moral. Agostinho lançou-se completamente nesta misericórdia: “Senhor meu Deus, a quem todos os dias a minha consciência se confessa, mais confiante na tua misericórdia do que na sua inocência”.[56]
A graça perdoadora enche seu coraçào da certeza de que o repouso em Deus é possível: “Sei que, pela tua graça e misericórdia, meus pecados se desfizeram como gelo ao sol; devo à tua graça também todo o mal que não pratiquei”.[57]
Nas Confissões vemos uma grande preocupação em se fazer uma separação entre o conhecimento especulativo de Deus e o conhecimento do coração. É importante aquele que procura descanso em Deus saber que conhecer teologia não implica em conhecer a Deus:
Dizem muitas verdades sobre as criaturas, e não buscam devotamente a verdade, artífice da criação; assim, não a encontram, ou, se a encontram, embora conhecendo a Deus, não lhe prestam honra como a Deus, nem lhe rendem graças.[58]
E o que a alma prova quando encontra o Deus a quem procura? Após o exame do que a alma que procura descanso em Deus deve crer e fazer é oportuno que saibamos o que o coração humano experimenta quando tem um encontro com Deus. Para Agostinho a alma prova de um repouso imperturbável: “O lugar do repouso imperturbável está onde não se renuncia ao amor, se este não recua”.[59]
O gozo proveniente da contemplação do plano da salvação é outra fonte de prazer na vida do crente: “Nesses dias, não me saciava a maravilhosa doçura de considerar a grandeza de teus desígnios para a salvação da humanidade. Quantas lágrimas verti, de profunda comoção, ao mavioso ressoar de teus hinos e cânticos em tua igreja!”[60]
O prazer de só encontrar felicidade em Deus é outra consequencia que o comovia. Encontrar felicidade no que é por si mesmo amável e que não se perde nunca:
Longe de mim, Senhor, longe do coração do teu servo, que se confessa diante de ti, longe o pensamento de que uma alegria qualquer possa torná-lo feliz. Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que te servem por puro amor: essa alegria és tu mesmo. E esta é a felicidade: alegrar-nos em ti, de ti e por ti.[61]
A cruz vem a se constituir no grande motivo de encanto, admiraçào e louvor do coração de Agostinho. O seu Deus manifestou seu amor na história: “Quanto nos amaste, ó Pai bondoso, a ponto de não poupares teu Filho unigênito, entregando-o por nós nas mãos de ímpios! Quanto nos amaste!”.[62] Esta é a alegria dos redimidos. Em Deus a alma humana pode repousar.
O IMPACTO DAS CONFISSÕES NA HISTÓRIA DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ.
Fazer um apanhado da influência das Confissões na história subsequente do cristianismo é tarefa muito acima do escopo deste trabalho. Trata-se de algo muito vasto. Sua influência é claramente sentida na vida espiritual e teologia de todos os gigantes após ele. Em especial, Tomás de Aquino, Lutero e Calvino.
A influência de Agostinho em Tomás de Aquino é tamanha que uma simples leitura da sua Suma Teológica passa-nos a idéia de que o que este fez foi somente comentar os textos das Escrituras e os de Agostinho. A dívida de um para com o outro é clara em passagens como estas:
A bem-aventurança é o fim último da criatura racional. Ora, ser fim último da criatura racional só convém a Deus. logo, só Deus é a bem-aventurança dos bem-aventurados...só Deus é a bem-aventurança, porque só é bem-aventurado alguém que conheça Deus, conforme as palavras de Agostinho: ‘Bem-aventurado aquele que te conhece, ainda que ignore tudo o mais’.[63]
O impacto das obras de Agostinho na vida dos reformadores é tão claro que podemos dizer que as obras de homens como Lutero e Calvino foram um reavivamento Agostiniano. Destacando a influência de Agostinho em Lutero Marc Lienhard afirma: “Lutero reportou-se a Santo Agostinho para afirmar que ‘o ser humano, sendo árvore má, não pode senão querer e fazer o mal’. ‘Ele não é livre, e sim cativo’. Amar a Deus, por natureza, sobre todas as coisas, é uma ficção, uma quimera, por assim dizer’.[64] Em que Agostinho especialmente influenciou Lutero? Liehard responde fazendo os seguintes comentários: “De santo Agostinho Lutero reteria sobretudo os escritos antipelagianos... Com Santo Agostinho, Lutero falará de uma verdadeira corrupção do ser humano... Descobriu em Santo Agostinho o hino à potência plena da graça”.[65]
Na vida de João Calvino a influência da espiritualidade agostiniana faz-se sentir na seguinte afirmação:
Destarte, também a nós se nos impõe aplicarmo-nos a essa investigação de Deus, uma investigação que de tal modo nos mantenha o espírito supenso de admiração, que, ao mesmo tempo, com eficaz sentimento ao fundo nos toque. E como, em certo lugar, ensina Agostinho, já que, como se a desfalecer sob a Sua grandeza, não o podemos apreender, convém lhe atentemos às obras, para que nos refaçamos em Sua bondade.[66]
Em certos autores a semelhança entre o que falaram e Agostinho falou é tamanha que somos levados a dizer que tiveram este como fonte de seus esccritos embora não possamos prová-lo. Veja por exemplo o caso de Pascal que demonstra de forma explícita em sua mais famosa obra haver recebido a influência de Agostinho e que numa citação onde embora não mencione o nome deste deixa claro a marca de Agostinho em seu pensamento: “O Deus dos cristãos é um Deus que faz sentir à alma que ele é o seu único bem; que todo o seu repouso está nele; que não terá alegria senão em amá-lo”.[67] Sobre o estado de infelicidade da alma humana longe daquele que a criou ele diz: “Somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade, e somos incapazes tanto de certeza como de felicidade”. [68] Num outro contexto afirma: “Procura-se o repouso combatendo alguns obstáculos; e, vencidos estes, o repouso se torna insuportável”.[69]
A influência do que Agostinho ensinou na sua mais famosa obra é claramente sentida na vida de muitos autores dos séculos XX e XXI. R.C. Sproul citando a famosa declaração de Agostinho comenta: “Estas linhas imortais da lavra de Aurelius Augustine captam os sentimentos mais profundos de cada cristão”.[70]
Alistar McGrath reconhece a influência do conceito de beleza de Agostinho na obra de C.S. Lewis:
Há alguma coisa auto-destruidora no desejo humano, na qual o que é desejado quando realizado, parece levar para um desejo insatisfeito. Lewis ilustra isto a partir da velha busca pela beleza, usando reconhecidamente o imaginário Agostiniano.[71]
E de fato podemos ver uma clara conexão de idéias:
Os livros ou a música em que nos parecia morar a beleza vão trair-nos se neles confiarmos; ela não estava neles, apenas nos vinah por intermédio deles, e o que nos vinha era uma grande saudade. Tudo isso, a beleza, a memória do nosso passado, são belas imagens do que realmente desejamos. Mas quando confundidos com a coisa em si, transformam-se em ídolos mudos e despedaçam o coração de quem os adora. Porque eles não são a coisa propriamente dita; são apenas o aroma de uma flor que não encontramos, o eco de uma melodia que não ouvimos, notícias de uma país que nucna visitamos.[72]
John Piper ressalta o fato de que aprendeu como amar a Deus de modo especial mediante Agostinho: “Agostinho orou com as seguintes palavras, que provaram ser imensamente importantes em meus esforços de amar a Deus com todo o meu coração: ‘pouco te ama aquele que ao mesmo tempo ama outra criatura, sem amá-la por tua causa”.[73]
Richard Foster descreve em termos Agostinianos as características constitucionais do homem e como este de modo distorcido procura na criação o que só pode encontrar em Deus:
Porque nós fomos selados com a imagem de Deus, nós ansiamos pelo bem, a verdade, a beleza. Porque nós vivemos num mundo bom que se tornou mau, nós desejamos as distorções da boa criação de Deus. Nós tentamos com toda a força da vontade buscar o bem, mas nós falhamos, sempre falhamos, porque a vontade está em conflito consigo mesma e em necessidade de redenção. Simplesmente pensar bons pensamentos ou desejar boas coisas não é suficiente. Nós precisamos, como Agostinho e Paulo antes dele, do poder transformador do Cristo vivo e presente entre nós. Assim nossas vontades conflitantes podem vir a estar sob a regra do Árbitro divino.[74]
Grande influência é sentida também na vida do filósofo católico francês Jean Guiton. Este fala sobre a verdade de um modo muito semelhante ao de Agostinho. A verdade existe e é eterna. Podemos começar a tomar consciência da sua existência à partir da dúvida de tudo o que nos cerca que só não nos permite negar a verdade de que duvidamos. Logo, é possível ter-se certeza na vida. A grande bênção da vida é não parar aí, mas ir adiante como quem sabe que perante a verdade não basta sobre ela pensar, mas segui-la:
Sou um velho platonista cristão, um agostiniano, como se diz. Começo a ficar mais ou menos cético, como todo mundo. Depois, compreendo que isso não dá, que existem verdades, especialmente o eu penso, eu sou, eu vivo, e as matemáticas, e a biologia etc. Se existem verdades fundadas, há um critério absoluto e um fundamento radical dessas verdades. Existe, portanto, uma verdade primeira e absoluta. Ser um espírito é viver no seio dessa Verdade, sob a luz desta Verdade, no caminho que é um movimento eterno em direção a essa verdade. Mas aquilo que não é verdadeiro não é. A verdade é o ser verdadeiro. Portanto, essa Verdade primeira é o próprio Ser. E ela é eterna. Tudo isso é evidente.[75]
E numa passagem bem agostiniana, Guiton junta duas coisas que Agostinho amava acima de tudo: a mulher e Deus: “Não há nada mais belo, aqui em baixo, do que a beleza de uma mulher. Mas, subtraia o desejo de absoluto, subtraia a sede de infinito,o amor não passa de fisiologia”.[76]
John Stott fala em termos claramente agostinianos ao enfatizar o papel do amor na vida humana:
É no amor que nos encontramos e nos realizamos. Além do mais, não é precismo ir muito longe para buscar a razào para isso. É porque Deus é amor em sua essência, de tal forma que, quando le nos criou à sua própria imagem, deu-nos a capacidade de amar assim como ele ama. Não é à toa, portanto, que os dois grandes mandamentos de Deus são amá-lo e amar uns aous outros, pois esse é o nosso destino. Uma existência verdadeiramente humana é impossível sem amor. Viver é amar, e sem amor nós murchamos e morremos. Como expressou Robert Southwelll: ‘Não quando eu respiro, mas quando eu amo, aí é que eu vivo’. Ele provavelmente estava fazendo eco à observação de Agostinho, de que a alma vive onde ela ama, não onde ela existe.[77]
Claudio Moreschini e Enrico Norelli reconhecem a singularidade e intensidade de tudo aquilo que Agostinho escreveu sobre a vida, o homem e Deus:
Deus...não é o Deus dos filósofos, idealizado por eles como absolutamente transcendente, de modo que o homem é incapaz de imaginá-lo: ao contrário, é tão presente e pessoal que o coração do homem fica inquieto enquanto não encontra paz nele. É a característica das Confissões, como de Agostinho em geral, a introspeção psicológica em busca dos movimentos irracionais e inexplicáveis da mente, introspecção dirigida não apenas a si mesmo, mas a todos. Nenhum escritor cristão possui este Dom com tanto refinamento...[78]
Agostinho fez teologia de uma tal forma que ninguém ao ler suas obras deixa de levar consigo a impressão de que teologia nunca deve ser algo apenas sobre o que pensar, mas sobre o que confessar. Teologia é diálogo com Deus, culto e desejo ardente de se conhecer a verdade não apenas pensando, mas orando. Por isto sua larga influência na história do cristianismo subsequente.
CONCLUSÃO
Agostinho revela nas suas confissões uma padrão Neo-testamentário de conversão. Sua conversão veio acompanhada de mudanças operadas na sua mente, afeições e vontade. Agostinho buscou a verdade. E não se satisfez enquanto não a encontrou. E só parou de procurá-la quando viu uma base adequada para ela. Sua conversão foi resultado de convencimento intectual.
A conversão de Agostinho, contudo, afetou suas afeições também. Nele encontramos uma mente iluminada acompanhada de um coração aquecido. Era para ele impossível pensar sobre Deus de um modo não passional. Suas reflexões estão entremeadas de orações, louvores e encanto. Ninguém lê suas Confissões e fica com a impressão que quem as escreveu não estava relacionado intimamente com o que escrevia.
Merece destaque o fato de todo o curso da sua vida foi alterado também. Um outro padrão do NovoTestamento para conversão é visto em Agostinho. Que padrão é este? A árvore boa dá inevitavelmente bom fruto. Jamais leríamos suas Confissões com admiração se Agostinho, por exemplo, continuasse na vida de impureza sexual que vivia. Ao abrir mao de prazer que lhe era tão caro por julgá-lo incompatível com o prazer maior de se deliciar em Deus Agostinho seguiu o modelo dos evangelhos.
Fica para teólogos e pastores a mensagem de que não podemos fazer teologia de modo diferente. Aí está algo sobre o qual não se deve falar sem estar envolvido com todo o ser. A linguagem tem que ser digna da majestade do tema. Não se deve escreve sobre assuntos tão excelsos sem antes orar com fervor, pois a porta da verdade não se abre para os auto-suficientes. Por fim, conversão que não alcance a mente, as afeições e a vontade não é conversão agostiniana e muito menos bíblica. Isto deve ser pregado e ensinado.
Os que dizem fazer trabalho psicológico profundo, como a psicanálise que tanto fala sobre os desejos (pulsões) inconscientes, deveriam ser mais coerentes e descer para os níveis em que Agostinho desceu. Nesta descida para os porões do inconsciente o que esperamos encontrar? O que subjaz à todo desajuste, anseio irreprimível e neurose? Não seria a ausência daquele sem o qual a alma humana nunca se satisfaz? Qual deve se o alvo da terapia, então? Para onde se espera conduzir o paciente? E quando ele falar sobre um anseio por algo que nada na vida satisfaz e que o leva a se comportar de uma forma contrária ao superego? Vamos dizer para ele que tudo se resume as pulsões sexuais conforme experimentadas à partir da primeira infância? O que Agostinho diria é que o homem continuará infeliz e neurótico enquanto não repousar em Deus.
Há uma mensagem para os cidadãos em geral deste século também. Estamos correndo tanto atrás do que? O que adianta conhecermos o “curso da Ursa Maior” se não sabemos quem somos? O que nos leva a não termos tempo a fim de mergulharmos dentro de nós mesmos para emergimos como quem sabe que descobriu dentro de si uma sede por algo que não é desta vida? Vimos o Agostinho maniqueísta, cético, platônico e cristão. A alma atormentada em busca da verdade. O que nos impede de termos interesse pelo que de mais importante existe na vida?
Por último, descobrimos em Agostinho que ele encontrou no Deus cristão a satisfação de todos os seus anseios. Não é a fé em Deus que haverá de nos satisfazer, mas a fé no Deus de Agostinho, o Deus Trino, Pai, Filho e Espírito Santo, a “divina delícia” da alma de quem o conhece.
BIBLIOGRAFIA
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[5] Agostinho, Confissões. Edições Paulinas. São Paulo, 1986. P. 77
[6] Latourette, Kenneth Scott. Historia del cristianismo. Tomo I. Casa Batista de Publicaciones. 1976. P. 137
[7] Agostinho, Confissões. Edições Paulinas. São Paulo, 1986. P. 205.
[8] Ibdem, p. 214-215.
[9] ibdem
[10] Gonzales, Justo. Historia del pensamiento cristiano. Editorial Caribe. Nashville, 2002. P. 11.
[11] Latourette, Kenneth Scott. Historia del cristianismo. Tomo I. Casa Batista de Publicaciones. 1976. P. 137
[12] Agostinho, Confissões. Edições Paulinas. São Paulo, 1986. P. 18
[13] ibdem
[14] ibdem.p. 94
[15] ibdem.p. 51
[16] ibdem. P. 52
[17] ibdem.p. 397
[18] ibdem.p. 55
[19] ibdem.p.55
[20] ibdem.p.155
[21] Copleston, Frederick. A History of philosophy. Image Books. New York, 1993.p.161-164. “Se este ser tivesse apenas uma realidade ideal, existisse apenas em nossa idéia subjetiva, nós ainda poderíamos conceber um ser maior, um ser que não existisse apenas em nossa idéia, mas com uma realidade objetiva. Segue-se, portanto, que a idéia de Deus como peerfeição absoluta é necessariamente a idéia de um ser existente, e santo Anselmo defende que ninguém pode ter ao mesmo tempo a idéia de Deus e ainda negar sua existência.
[22] ibdem.p.163
[23] ibdem.p. 298.
[24] Ibdem.p. 325.
[25] Ibdem.p. 398.
[26] ibdem.p. 111
[27] ibdem.p.377
[28] Gerstner, John. The rational biblical theology of Jonathan Edwards. Berea Publication, 1993. P. 59-62
[29] ibdem.p.375
[30] ibdem.p.43
[31] ibdem.p.61
[32] ibdem.p.72
[33] ibdem. P. 88
[34] ibdem.p.92
[35] ibdem.p.92
[36] ibdem.p.141
[37] ibdem.p.278
[38] ibdem. P. 149
[39] Pascal, Pensamentos. Edipro, Bauru, 2001.p. 189
[40] ibdem.p.15
[41] ibdem.p. 19
[42] ibdem.p. 277
[43] ibdem.p.279
[44] ibdem.p. 22
[45] ibdem.p.43.
[46] ibdem.p.45.
[47] ibdem.p.65.
[48] ibdem.p.225
[49] ibdem.p389.
[50] ibdem.p.37
[51] ibdem.p.68.
[52] ibdem.p. 45.
[53] Ibdem.p.59
[54] ibdem.p.139.
[55] ibdem.p.155
[56] ibdem.p.251
[57] Ibdem.p.53
[58] ibdem. P. 110
[59] ibdem.p.93
[60] ibdem.p.230
[61] ibdem.p.273
[62] ibdem.p.300
[63] Aquino, Tomás. Suma Teológica I. Edições Loyola. São Paulo, 2001. P. 491
[64] Lienhard, Marc. Martim Lutero: tempo, vida e mensagem. Editora Sinodal. São Leopoldo, 1998. P.53
[65] Lienhard, Marc. Martim Lutero: tempo, vida e mensagem. Editora Sinodal. São Leopoldo, 1998. P.41
[66] Calvino, João. As institutas. Casa Editora Presbiteriana. São Paulo, 1985. P. 76
[67] Pascal, Pensamentos. Edipro, Bauru, 2001.p. 94
[68] ibdem.p.188
[69] ibdem.p.177
[70] Sproul, R.C. A alma em busca de Deus. Juerp. Rio de Janeiro, 1995.p.13.
[71] McGrath, Alister E. Christian Theology. Blackwell Publishers, Bodmin, Cornwall,2001.p.195
[72] Lewis, C.S. Peso de glória. Edições Vida Nova.São Paulo,1993.p.14
[73] Piper, John. Desiring God. Multnomah Books, Sisters, Oregon, 1996. P. 142-143.
[74] Foster, Richard. Devotional classical. HaperSanfrancisco, New York, 1993. P. 57
[75] Guiton, Jean. Meu testamento filosófico.Edições Paulinas.São Paulo, 1999.p.41-42.
[76] Ibdem.p.252
[77] Stott, John. Ouça o Espírito ouça o mundo. ABU Editora. São Paulo, 1997. P. 60
[78] Moreschini, Claudio e Norelli, Enrico. História da literatura cristã antiga grega e latina. Edições Loyola. São Paulo, 2000.p.36
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